Kitsune, a raposa no Japão tem um significado especial. A raposa e os japoneses têm uma íntima história durante desde que o princípio da civilização japonesa. Desde do nascimento da agricultura, da religião, dos próprios japoneses. Leia até o final e entenda o porquê da raposa ser tão especial no Japão.
Pergunta rápida: Qual o primeiro animal que vem a cabeça quando pensa no Japão? 3..2.. 1… tempo!
Vamos lá. Imagino que alguns de vocês devem ter pensado numa carpa, daquela tatuada nas costas de um Yakuza? Ou talvez ter pensado naquele macaquinho japonês tomando banho numa terma natural no meio das neves?
Mas sem dúvida, se você já assistiu algum anime ou dorama, deve ter pensado em raposas ou guaxinim. Apesar de existirem vários animais que conseguem ser facilmente associados ao Japão, esses dois animais representam um símbolo bastante íntimo na vida dos japoneses.
Um símbolo é o espelho que reflete a cultura de um povo. Mais ainda, se esse for um animal. Haja vista tantas estórias e mitologias criadas durante todos esses povos até hoje.
Vamos dar um foco especial nas encantadoras histórias por trás do laço entre as raposas e os japoneses antigos – “antigos” porque 80% dos japoneses nem deve saber o motivo das raposas estarem nos templos japoneses. Nisso, você já vai estar a um passo na frente depois dessa leitura!
Nota: Esse texto será uma viagem divertida ao passado do Japão, olhado por vários ângulos a concepção do simbolismo da raposa. Por isso, ele tá um pouco maior que o texto padrão. Leia até o final e vai adorar como irá se sentir depois.
Dos tempos que a história se confunde com a mitologia
Vamos fazer uma viagem lá nas antiguidades do Japão. Era uma vez, nos tempos antigos, havia um Deus chamado Inari no kami 【稲荷の神】, que segundo a mitologia japonesa ou no shintoismo, representa o Deus da agricultura, da colheita, etc.
O natural é que comece a surgir “Deus” em cada coisa que acontece em volta e nos seus afazeres diários, principalmente nos tempos em que uma boa safra era questão de vida ou morte da sua família (Nada de lasanha congelada nos Konbini【コンビニ】ou loja de conveniência do posto shell ao lado de casa). Um “Deus” acaba sendo uma figura importante para a necessidade do povo da época e não demoraria para alguem começar a disseminar tais crenças por outros cantos do Japão. No meio dessa disseminação, ops! dizem que acabaram escrevendo errado o nome do Inari no Kami e acabou passando que ele era um raposa-deus. Quem entende Kanji deve sacar melhor o que to falando.
Outros diziam que a associação do Deus à raposa foi por causa do pé-de-arroz (Ine【稲】) se parecer com o rabo de uma raposa.
Há outra teoria que o processo foi contrário. Gosto dessa, pessoalmente. Como em outras culturas ao redor mundo, o povo japonês tinha uma grande dificuldade com os ratos nas plantações. Esses roedores arrasavam as colheitas que o pessoal se esforçou em cultivar durante as estações mais difíceis! Nisso, animais que caçavam os ratos acabavam ganhando uns pontos extras dos japoneses. A raposa era um desses animais. Começava a surgir a ideia de que era um símbolo abençoado de boa colheita, e assim, acabou sendo percebido como um represente de Deus da colheita, ou ele se confundir com ele próprio.
De uma forma ou outra, acredito que um pouco de cada teoria dessa tenha contribuído na percepção diferente da raposa. Foi assim que a raposa começou a virar um símbolo importante e ter um relacionamento íntimo com os japoneses.
Que história linda… me fez até chorar. Agora, cadê os fogos e as nove caudas das raposas?
Imagino que vocês estão doidos pra saber de onde vêm aquelas nove caudas de Naruto. Vamos chegar lá ttebayo!
De um lado existe essa simbologia de prosperidade e boa colheita da raposa. Engraçado que existem tribos na Ásia (como a tribo indígena de Hokkaido, os Ainus) que associam a raposa à um ser maligno com poderes mágicos. Há histórias antigas listadas no Nihon Ryouiki 【日本霊異記】(publicado em torno do ano 825) assim:
Um homem se apaixona por uma mulher, se casa, tem até um filho juntos… até que depois do cachorro latir pra ela, descobre que era uma raposa.
Há também uma influência budista na ideia demoníaca da raposa. Uma das histórias da Deusa hindu, a super grotesca Dakini – que posteriormente foi fundida à imagem do Inari no kami – tem um episódio vencendo uma raposa do mal que se transformava em pessoas. Quando essas histórias veio da China junto com a influência do budismo, as pessoas começaram a enxergar a raposa como um ser místico e que trazia má sorte, algo como o gato preto do ocidente.
A tacada final foi a história mais famosa das raposas, a do Kyuubi no kitsune 【九尾の狐】 ou a raposa de nove caudas. Mais famoso no ocidente por causa do NARUTO, o pokemon Ninetails da primeira geração ou talvez pelo mangá Nurarihyon no mago, que narra a história um pouco mais fiel dessa besta.
Originalmente essa história vem da mitologia chinesa que, apesar de apontar como uma das bestas sagradas que pode até trazer felicidade e prosperidade, normalmente simboliza um ser maligno que é responsável por causar tragédia, como acontece nas histórias de ficção mais moderna.
Além de ter estórias assim na China, nas da Índia a raposa de nove caudas aparece como uma mulher estupidamente linda que manipula os reis e homens poderosos a ponto de deixar tão abestalhado que acabava destruindo irresponsavelmente os seus impérios. Esse tipo de história é comum na China, como o clássico Houshin Engi【封神演義】“Investidura dos Deuses”. O que uma bela mulher faz hein?
Por esses países, essas histórias chegavam ao Japão. A versão mais famosa é a da Tamamono no mae【玉藻前】que segue mais ou menos o mesmo roteiro. Uma mulher bonita que o imperador se apaixona, depois começa a ficar todo doente, um monge descobre que é por causa dela, ela mostra verdadeira forma que é uma raposa de nove caudas branca dourada e o pessoal tenta mantar ela. No final ela vira uma pedra assassina que tem o veneno de matar quem a toca. Essa pedra é chamada de Sesshou-seki【殺生石】 e foi destruída em pedaços.
Se quiser dar uma olhada, basta visitar na província de Tochigi 【栃木】(que na verdade é venenosa por estar numa região vulcânica e emite gás venenoso, mas vou ficar quieto para não destruir os sonhos da galera).
Depois dessas estórias viralizarem no Japão
Existem várias estórias em cada canto do Japão protagonizando o misticismo da raposa. Aparece um príncipe chapado de Edo dizendo que viu fogos de raposa na montanha. Já em outra região, aparece uma raposa na forma de monge e dá sermão nas cidades. Até uma estória recente em Osaka, nos tempos de pós-guerra, de que havia uma família de raposa que vivia e trabalhava num bairro. Tinha certidões, RG, tudo certinho.
Sai desse corpo que não te pertence!
Uma outra curiosidade é que, como no ocidente haviam mulheres “possuídas pelo demônio” no Japão era dito que foram “possuídas pelos bestas”, no sentido de animal mesmo. Hoje em dia a gente sabe que isso é originado por hipnotismo ou de outras doenças psicológicas, mas na época acreditava-se que eram possuídos por espirito de cachorro, guaxinim ou como deve imaginar, raposa.
Existiam até famílias com poderes de usar os espíritos das raposas para amaldiçoar. Até hoje, em alguns vilarejos afastados, essas pessoas sofrem preconceitos e passa até dificuldades pra arranjar alguém para se casar.
Hoje em dia: a influência nos pequenos costumes dos japoneses
Isso não acaba somente em estórias e dos passados. Foram tão enraizadas que até hoje continuam dentro dos costumes dos japoneses, mesmo sem perceber.
Por exemplo, existe uma expressão em japonês chamado mayutsuba, que siginifica “algo falso, de mentira, que não dá pra acreditar na sua veracidade”. A origem é da raposas, que quando enganava ou se transformava em algo, pra saber se era verdadeiro ou não, os japoneses passavam na mayuge【眉毛】 ou na sobrancelha, o tsuba【唾】ou cuspe. Dai vem Mayu-tsuba.
Há também expressões como kitsune ni damasareta 【狐に騙された】 “fui enganado pela raposa” e kitsune no yome iri 【狐の嫁入り】 “casamento da raposa” mas já são conteúdos para o próximo texto.
Sabe aqueles gatinhos que ficam nas lojas?
Quando o comercio começou a crescer no Japão, o inari no kami acabou virando o Deus do comercio também. Para ter a benção nos negócios, os bonequinhos da raposa começaram a decorar as prateleiras das lojas. Um belo dia o governo da era Meiji achou isso inapropriado e vetou o uso desses bonequinhos e acabou sendo substituídos por bonequinhos de gatos chamado Maneki neko 【招き猫】que hoje até decora o restaurante chinês do shopping. As cores vermelha, dourada, preta e branca vem da figura da raposa.
Culinária japonesa: tem até um sushi em homenagem a ele
Falando um pouco de coisas deliciosas, existem pratos japoneses que vêm com o nome kitsune ou inari (raposa em japonês e o nome do Deus, lembra?) que normalmente referem à Abura-age 【油揚げ】 que nada mais é do que um tofu frito.
Nos tempos antigos, as oferendas para Oinari san (uma maneira mais íntima e carinhosa para Inari no kami) eram comidas contendo algo da cor vermelha. Depois começou a oferecer também o abura-age. Isso popularizou e começaram a chamar as poções de abura-age como oinari-san.
É o caso dos macarrões soba ou udon que, quando coloca um pedaço de oinari-san, fica com o nome Kitsune udon ou Kitsune soba (mas parece que é só em algumas regiões do Japão, pelo menos onde eu morava era assim). O mais engraçado é o caso do sushi feito de abura-age que virou Inari-zushi. Dá uma olhada na foto.
Então, foi o que restou
Existe um livro publicado pelo Takashi Uchiyama em 2007 chamado “Por que os japoneses não são mais enganados por raposas?” (tradução livre) em que explica o que resultou na “revolução espiritual de 1965”, que são: difusão das mídias de comunicação como rádio; elevação da escolaridade do povo; postura de não-crença a misticismo; e principalmente pelo afastamento dos seres humanos da natureza e imigração das cidades. Só eu que achei isso muito Ghibli?
O legal é que vários costumes desses ainda estão vivos dentro dos japoneses e agora você sabe quais são.
Arigatou por acompanhar até aqui! Espero que tenha curtido a história do povo japonês com as raposas. Já sabia de alguma dessas histórias com as raposas? Vamos aprofundar mais o papo nos comentários.
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Adorei o texto! Completo,interessante,leve e rico. Obrigada!
Arigatou, Roberta! Fico feliz que tenha gostado 🙂 Se tiver alguma sugestão de conteúdo ou alguma pergunta, fico a disposição!
Oi, eu adorei o texto! Completo e muito interessante!! Tenho uma pergunta: minha sogra (que não tem origens ocidentais) sempre falava “Chuva e Sol, casamento da raposa”, ontem, assistindo um k-drama eu também ouvi está mesma fala. E fiquei muito curiosa sobre isso, você teria algum escrito sobre isso? Ou poderia me explicar o porquê desse ditado, porque muita já pesquisei e não e encontrei nada que pudesse de fato satisfazer essa minha curiosidade!!
Arigatou, Fernanda! Obrigado pelo seu elogio e comentário 🙂 Isso vem do que falei brevemente no texto, o “kitsune no yome iri 【狐の嫁入り】 ‘casamento da raposa'”. No Japão, quando tem chuva mesmo com sol, dizem que está tendo esse casamento das raposas. A origem não é muito clara, mas dizem que é porque essas coisas misteriosas é típico das raposas fazerem. De enganar as pessoas. Mas em outros países tem mitos parecidos com outros animais como macaco, Jackal (Chacal), etc. Voltando ao Japão, esses “mitos” normalmente têm regiões com tradição mais enraizada. Em Quioto mesmo, tem evento de simular um casamento da raposa que atrai vários turistas.
Adorei o texto! O jeito extrovertido acaba prendendo leitores preguiçosos, como a mim rs…
Uma dúvida, qual o significado das máscaras Kitsune? Teria ligação com isso das raposas enganarem as pessoas?